Cíntia Martin fala ao Jornal da Dança – Fevereiro de 2001

Nesta seção eu periodicamente trago uma entrevista com um nome de expressão do sapateado, mas desta vez, o espaço de entrevistas da TapWeb Cintia Martin cede lugar a uma entrevista que concedi ao “Jornal da Dança”, jornal de circulação nacional editado no Rio de Janeiro, e que foi publicada na edição número 59, do bimestre janeiro/fevereiro de 2001. Na mesma edição, saiu também um artigo de minha autoria, escrito em 2000.

Por motivos de espaço e da composição gráfica do jornal, nem todas as respostas foram publicadas, e portanto coloco a entrevista na íntegra aqui no site. Evidentemente, ninguém precisa concordar com tudo o que está escrito, mas acho que vocês vão gostar, pois tudo o que comento vem de minha experiência de tantos anos ministrando aulas e realizando performances de sapateado pelo Brasil.

Um enorme abraço a todos e obrigada pela atenção e carinho !

Cíntia Martin

“Cíntia Martin no caminho do Tap” – Entrevista com a sapateadora carioca Cíntia Martin, que desliza sobre o fascinante mundo do Tap, sua linguagem, necessidades e um ponto de vista abrangedor do universo nacional do ensino desta arte maravilhosa. Cíntia, que é diretora da Companhia Claquettes, bailarina, professora e coreógrafa, nos dá um panorama de sua maior paixão – o sapateado. E para quem quiser conhecer melhor o trabalho desta artista do Tap é só acessar na internet que todos saberão mais sobre o Sapateado no Brasil.

O que levou a senhora organizar um projeto de integrar e divulgar o sapateado no Brasil?

O sapateado é uma arte pouca divulgada no Brasil pelo fato de não haver companhias de reconhecimento e de grande difusão na mídia nacional, por ser uma arte ainda em desenvolvimento e nova, apesar de ser lecionada há algumas décadas. O sapateado não é visto e encarado no próprio meio da dança como uma arte de expressão e sim como dança folclórica – sem nenhum preconceito com as danças folclóricas, mas isso acaba tirando o sapateado do foco principal, restringindo seu espaço e diminuindo o seu valor. Com tudo isso e a falta de conhecimento de alguns profissionais do sapateado, seja por falta de material didático, reciclagem ou interesse, percebi em minhas viagens pelo Brasil a falta de conhecimento que existia, desde a nomenclatura até a sua origem. Há quase 15 anos viajo pelo Brasil ministrando cursos de todos os níveis, realizando palestras, performances, compartilhando o que venho aprendendo e ensinando há tantos anos, e vejo que há muita desinformação, pouco material didático e ao mesmo tempo muita gente querendo – e precisando – aprender.

Ao me deparar com isso, resolvi então primeiro escrever uma apostila, singela mas com informações básicas e necessárias para que um professor ou estudante adquirisse um mínimo de conhecimento e que assim pudéssemos ter no Brasil uma harmonia no ensino do sapateado, a fim de que os professores pudessem saber e contar a seus alunos a história e a origem do sapateado americano. No ballet, um Plié é Plié aqui como na França, nos Estados Unidos e na Rússia. No sapateado isso também é assim: um Flap é um Flap, seja aqui, no Estados Unidos, na França, no Japão, na Alemanha, e não podemos sair inventando nomenclaturas para passos já definidos. Podemos, sim, lógico, adaptar e simplificar, mas não posso de repente resolver chamar o plié de bola-de-gude (grosseiramente exemplificando, mas é uma mostra de como às vezes acontecia no sapateado).

Ao ter acesso à internet e às suas facilidades, resolvi expandir e compartilhar essas informações e me colocar à disposição com meu pequeno conhecimento desses anos de estudo e amor ao sapateado a todos que queiram e tenham algum interesse. Criei a TapWeb Cíntia Martin (http://www.geocities.com/cintiamartin) que tento atualizar sempre que possível, compartilhando meu conhecimento, as novidades, dicas, fotos e um cadastro de sapateadores, grupos e companhias, dentre muitas outras informações. A receptividade, o carinho e principalmenteo intercâmbio tem sido enormes.

No Brasil ainda pouco se incentiva a arte e os artistas: cabe então a nós fazermos, um pouquinho ao menos que seja, para que possamos ajudar a enriquecer nossas mentes e ampliar nossos caminhos.

A senhora faz um grande movimento de divulgação do sapeteado na internet. E no mundo real, como divulgar mais esta arte?

Na internet, procuro estar sempre colocando novidades em minha página e colocando-me à disposição a qualquer pessoa no que eu possa ajudar. Além disso, meu marido (Marcelo Batalha) faz, por conta própria e num trabalho dedicado de organização e pesquisa, uma divulgação semanal para mais de 600 sapateadores e amantes da arte, onde divulga (gratuitamente) eventos, apresentações, cursos, escolas, academias, entrevistas, tudo que se refere ao mundo do sapateado americano que esteja acontecendo por todo canto do país e até no exterior. Essas informações são passadas pelos próprios integrantes da lista (por e-mail ou pelo site http://www.geocities.com/divulgando) e com isso está unindo bastante a classe do sapateado e fazendo um intercâmbio bastante interessante.

Na vida fora internet já fica mais difícil, pois a mídia no Brasil, como em todo o mundo, é muito fechada, e ter acesso a conseguir divulgar algum evento é as vezes desgastante. Além disso, os jornais e revistas especializadas em dança ainda não costumam dar muito espaço para o sapateado, mas aos poucos estamos conseguindo uma maior abertura, embora ainda longe do suficiente para divulgação da arte. Conseguir espaços gratuitos e matérias relevantes é difícil, fazer propagando custa caro, levantar verba para eventos e espetáculos é tarefa complicada… as dificuldades são enormes.

Criei a Companhia Claquettes no ano passado, um grupo de jovens e talentosos sapateadores com os quais venho realizando com bastante cuidado e com o empenho de todos um trabalho de aperfeiçoamento, pesquisa e criação, como mais uma forma de divulgar o sapateado pelo país, realizando apresentações em cima de novas coreografias nos mais diversos estilos, mostrando a enorme amplitude de idéias, sons e ritmos que podem ser realizados com o sapateado. De uma forma geral, as dificuldades para se levantar verba para espetáculos e apresentações são imensas. Infelizmente, ainda é difícil encontrar empresas que aceitem patrocinar eventos ou shows de sapateado, apesar do nivel técnico estar aumentando a cada dia. Precisamos realmente investir; investir significa ter paciência, pois o retorno geralmente vem a longo prazo, e essa visão os possíveis patrocinadores ainda não têm.

Conseguiremos apoio e patrocínio a partir do momento que as companhias de sapateado que surgem pelo país forem se firmando, mas para isso é necessário não somente dinheiro, mas também muita boa vontade, paciência e, acima de tudo, colocar os pés no chão, perceber a realidade e tentar se adaptar a esta realidade e em seus projetos, fazendo orçamentos e planejando tudo com muito jeito e cuidado. Acho inclusive que cada sapateador e profissional, individualmente, poderia ajudar nessa divulgação, começando dentro das próprias escolas a academias. Mas acima de divulgar é necessário respeitar e procurar fazer um trabalho sério e com qualidade. A divulgação vem em cima de algo palpável como cursos de qualidade, um evento, um espetáculo. Fora isso, ainda é muito difícil conseguir divulgar no Brasil, mas espero que aos poucos esse panorama melhore, mas não podemos esperar que caia do céu.

Todo o segmento geralmente tem uma liderança. No sapateado a senhora acha que existe essa liderança?

No Brasil não, no exterior sim, mas não encaro como liderança, até porque não há um nome único, e sim prefiro dizer que existem grandes sapateadores aos quais nos espelhamos e respeitamos, como Mrs. Brenda Bufalino, Mr. Jimmy Slyde, Mr. Buster Brown, Gregory Hines, Savion Glover, Mrs. Dianne Walker e dezenas de outros. Não somente pela excelência de seu trabalho, mas esse número enorme de grandes mestres atuantes formam um exemplo importante para nós: melhor que estabelecer uma liderança única, é muito mais importante que o maior número possível de excelentes profissionais mostrem o seu trabalho de forma cada vez mais ampla e que lutem pela difusão e qualidade da arte do sapateado em nosso território de maneira abrangente e consistente.

Como a senhora vê o ensino do sapateado em nosso país?

O sapateado no Brasil evoluiu bastante nos últimos anos e os professores estão tentando se reciclar e se manter atualizados, o que é muito importante. Devido ao fato de nosso país ter dimensões enormes, isso dificulta que todos os professores tenham acesso às informações e novos cursos, dificultando esse crescimento e trazendo distorções. Além disso, sempre existirá as exceções, aqueles professores que acham que já sabem tudo e não procuram o seu crescimento e, consequentemente, o crescimento de seus alunos. Creio que o ensino do sapateado no Brasil melhorará quando os professores, além do dever de se preocuparem com um bom ensino da técnica e base, procurarem tentar criar uma linguagem própria, sua e brasileira, pois a maioria dos profissionais tentam simplesmente copiar o que os americanos fazem. Não que seja errado, mais cresceremos mais e tomaremos vulto internacional a partir do momento que mostrarmos nossa linguagem em cima da técnica correta e precisa.

No Rio de Janeiro, só temos uma escola especializada em sapateado. Isso não dificulta a formação e a proliferação desta arte?

Não. Lógico que falando como sapateadora seria mais bacana que existissem mais e mais escolas que se dedicassem apenas ao sapateado americano, mas convenhamos que a situação econômica do país dificulta um pouco isso, e além do mais não tira o crédito de uma academia que ensina Jazz ou Ballet ou que seja uma academia de ginástica, ou que se dê aula em um condomínio ou aulas particulares. O importante é que exista o espaço, que exista um bom professor provido de uma boa técnica e de uma boa didática e que existam alunos dispostos a aprender ou a relaxar ou até mesmo a se divertir. Não vai ser o local da aula que definirá sua qualidade, pode ser em praça pública: de nada adiantariam várias escolas dedicadas apenas ao sapateado americano com professores ruins e não qualificados.

O que a senhora tem a dizer sobre a ausência do sapateado nos festivais e mostras de dança no Brasil?

Acho muito triste, pois existem ótimos profissionais no país, alguns de nível internacional, e existem escolas e grupos com ótimas propostas, mas essa é uma situação muito delicada, e o peso da ausência se deve à organização dos eventos e também em parte aos próprios sapateadores.

O sapateado sempre esbarra nos festivais com uma serie de dificuldades, que vem desde a pré-seleção: raramente nas seleções está presente pelo menos um sapateador, e já cansei de ver números maravilhosos deixarem de ser classificados enquanto números deficientes são escolhidos.

Há também a questão dos jurados: há festivais que não tem sapateadores no júri, ou quando tem é apenas um em meio a três, quatro, cinco outros.

Outra questão delicada é a do piso: para se sapatear é necessario um piso adequado, um solo de madeira com adequada equalização, microfones, etc… Alguns festivais não se preocupam em retirar o linóleo, nem colocam microfones ao chão. E é importante que o palco seja de madeira adequada, não podendo ser por exemplo de madeirite ou nem compensado abaixo de 10mm. Esses são apenas alguns pontos: entendo que fica caro para alguns festivais arcar com esses gastos, mas infelizmente é o preço – e é o mínimo – diante do trabalho de meses do coreógrafo, pois é uma falta de respeito não se oferecer um mínimo de condições para que os números sejam executados. Muitos sapateadores, por sua vez, também nada renvidicam, não exigem melhores condições de trabalho. E’ preciso mudar isso.

O que a senhora enfoca em suas palestras quando ministradas?

Varia muito do tema pedido ou do tipo de evento, mas em geral as palestras tratam da origem e da história do sapateado, que muita gente desconhece, além de técnica e didática em aula, da importância do movimento bem executado, da prática constante, muita coisa. Há passos sendo ensinados de forma incorreta e sem que sequer se saiba pronunciar seu nome; há sapateadores, incluindo muitos professores, que nunca ouviram falar em Bojangles, nos The Nicholas Brothers e tantos outros nomes. E’ importante compartilhar, é importante espalhar o conhecimento do sapateado, de nada adianta nós professores e sapateadores mais experientes guardarmos para nós mesmos o conhecimento.

Como é feito o intercâmbio entre os professores de sapateado?

Através de cursos livres e eventos, como o Tap Encontro que acontece aqui no Rio de Janeiro e outros festivais que a cada ano surgem ou se estabelecem com mais força por todo o Brasil. E’ imprescindível que o professor se recicle e pratique sempre. Não basta apenas ir para a sala de aula para passar o que sabe, é preciso que o professor treine constamente, apure a sua técnica e, acima de tudo, esteja sempre aberto ao aprendizado. Nunca sabemos tudo, e temos sempre muito a aprender.

Existiu na década de 90 uma iniciativa muito importante, por parte de Stella Antunes, a Sapateata e infelizmente parou. O que a senhora acha que aconteceu com o movimento?

A sapateata (passeata de sapateadores) foi muito bacana, levava à rua centenas de sapateadores se confraternizando e divulgando diretamente essa arte. Foi um grande começo para o crescimento do sapateado no Brasil. Nos Estados Unidos acontece o Tap Parade também com o mesmo intuito. Hoje em dia, o Tap Encontro também faz esse papel, reunindo anualmente centenas de pessoas de várias partes do país. A sapateata no Rio infelizmente parou e espero que um dia Stella retome sua iniciativa, mas não pensem que é algo fácil, é necessária muita disposição, pois as exigências que uma prefeitura municipal faz são inúmeras, são dezenas e dezenas de autorizações dos mais diversos orgãos do estado.

A senhora acha que o sapateado no Brasil já tem um estilo próprio ou ele ainda continua uma colagem americana?

Mesmo depois de tantos anos, o sapateado é uma arte ainda nova por aqui, e acho que ainda estamos descobrindo nossa “cara” e estilo, mas existem sapateadores que já trabalham um estilo unicamente brasileiro. Acho importante que as pessoas se inspirem nos americanos, mas que procurem ter sua luz própria traçando seu caminho. Um grande problema é que não é todo mundo que tem a oportunidade de viajar e expandir seus horizontes, fazer novos cursos, e como aqui quase não temos acesso a videos e nem a shows, cópia daqui e cópia dali ainda é inevitável. No dia em que todos os profissionais comecarem a tentar traçar seu estilo, tenho certeza que seremos um dos pólos mais importantes de sapateado do mundo, pois musicalmente falando somos muito ricos, nosso swing é lindo, o Brasil tem uma enorme riqueza cultural que pode ser aliada à técnica do sapateado americano e se transformar em beleza, emoção, em arte de qualidade e cada vez mais popular.

As vezes que assisti coreografias de sapateado achei que 99% esquecem de criar e ficam só repetindo coisas de sala de aula. Onde fica o sapateado dançado e coreografado ?

Fica difícil falar, mas acaba-se caindo naquele velho clichê: “nem todo coreógrafo é um ótimo bailarino, nem todo bailarino é um ótimo coreografo ou professor…”, é mais ou menos por aí. As pessoas precisam pensar um pouco melhor não somente nos passos mas nas intenções, pensar em para que situação será aquela coreografia, e assim trabalhar-la de acordo. O sapateado é também um instrumento de percussão, e isso não pode ser nunca esquecido ao se coregrafar. Ritmo, movimento, expressividade, intenção, uma mistura de tudo isso aliada à criatividade e técnica afinada é o que pode fazer a diferença.

O Jornal da Dança: como ele pode contribuir para o sapateado?

Não só o Jornal da Dança mas também todos os veículos de comunicação e divulgação da arte deveriam abrir cada vez mais espaço para o sapateado, pois temos muita qualidade em nosso país e precisamos de espaço para mostrar essa arte, a fim de que o sapateado possa se possa cada vez mais conhecido e conquistando o coração e os pés de mais e mais pessoas por todo o nosso país. Agradeço ao Jornal da Dança a oportunidade e espero que continuem a dar um espaço para se falar sobre sapateado e suas novidades.

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